Os Argumentos da Polémica
Durante a recente presidência aberta no Alentejo, o senhor Presidente da República expressou a opinião de que era necessário dar um enquadramento legal claro e definitivo à tradição das festas de Barrancos, o que trouxe, uma vez mais, a questão da morte de touros nas festas de Barrancos para a ordem do dia. Na sequência disto, vários políticos de diferentes quadrantes expressaram opiniões idênticas e o CDS/PP avançou com um projecto-lei à Assembleia da República, que visa permitir autorizações excepcionais nos casos em que se verifique "a existência de uma tradição local histórica e ininterrupta".
A intervenção do senhor Presidente da República teve o mérito de fomentar novamente a discussão desta questão, o que é tanto mais necessário quanto é verdade que, até ao momento, o seu tratamento tem sido substancialmente incorrecto. Contudo, o senhor Presidente e a maioria dos políticos que já se pronunciaram reduziram-na a um problema legal e jurídico, ignorando ou dando tacitamente por resolvido o problema moral que está na sua base e sem o qual o problema legal não faz sentido.
O problema moral
O problema de fundo em relação às festas de Barrancos é o de saber se o sofrimento e a morte de touros numa arena com o fim de satisfazer objectivos lúdicos pode ser moralmente justificado. A análise dos argumentos seguintes mostrará que não há justificação moral e, nestas circunstâncias, o sofrimento dos animais é gratuito e inaceitável.
Talvez seja por isto que os defensores da morte de touros nas festas de Barrancos evitam discutir a questão no campo da moral e apresentam a tradição como principal razão para a sua prática. Mas não é apenas a tradição que é visada pela lei actualmente em vigor. Se fosse, a lei não faria sentido. Pelo contrário, o seu objectivo é dar expressão legal a um princípio moral e, na ausência de qualquer razão válida para recusar este princípio, não há nenhuma razão para pôr de lado, mesmo que apenas num caso, a lei que lhe dá corpo.
Vejamos alguns dos principais argumentos usados pelos defensores da morte dos touros.
O argumento da tradição
O "argumento da tradição" consiste em defender as festas de Barrancos por serem uma tradição. Quem utiliza este argumento parece acreditar que o simples facto de estas festas constituírem uma tradição lhes confere um valor que por si só justifica a sua existência. Ora, se isto fosse verdade, sê-lo-ia não só para as festas de Barrancos mas para todas as tradições. Mesmo actos moralmente inaceitáveis teriam de ser tolerados por constituírem uma tradição. Claro que não estamos dispostos a aceitar tradições más e, por consequência, não basta que algo seja uma tradição para que seja mantido. Assim, o facto de serem uma tradição, por si só, não justifica as festas de Barrancos.
É certo que o povo de Barrancos tem um grande apreço pela sua festa e que boa parte desse apreço vem do facto de ela ser uma tradição sua. Mas, como vimos, o simples facto de uma prática ser tradicional não basta para a tornar aceitável. É preciso interrogarmo-nos se as festas de Barrancos são uma tradição boa ou, quanto muito, moralmente neutra. Isto torna claro o seguinte: é irrelevante se as festas de Barrancos são ou não uma tradição; o que importa saber é se é moralmente correcto provocar o sofrimento de animais para prazer dos seres humanos. Se se considerar que sim, nada distinguirá os espectáculos com touros de morte das lutas de galos e de cães e não existirá nenhuma razão para que estas últimas não sejam legalizadas.
O argumento dos direitos
Outro argumento muito usado em defesa das touradas de morte é o de que, como os animais não têm deveres, não têm direitos. Mas, os recém-nascidos e os deficientes mentais profundos, por exemplo, também não têm deveres. Será que, por esse motivo, não têm direitos? É claro que têm. Portanto, pode-se ter direitos sem deveres e não se vê por que razão isto não é também verdade para alguns animais.
Muitos defensores da morte de touros nas festas de Barrancos baseiam-se na Bíblia para rejeitar os direitos dos animais. O "argumento bíblico" consiste em afirmar que os animais foram criados para o homem. Antes de mais, este argumento só pode ser aceite por quem interexemplo, uma leitura literal do livro do Génesis poria a mulher sob o domínio masculino tanto quanto o estão hoje os animais sob o domínio dos homens. Houve tempos em que as coisas eram assim, mas com certeza que ninguém os quer reeditar. ainda menos provável.
Além disso, a teoria da evolução das espécies, ao fazer dos animais actualmente existentes o resultado da selecção natural, torna a ideia de que foram criados para o homem prete literalmente a Bíblia. Para muita gente, portanto, o argumento é ineficaz. Por
Há, contudo, algo que pode convencer mesmo os mais cépticos da inutilidade do "argumento bíblico". Referimo-nos à existência de vários documentos da hierarquia da Igreja (incluindo uma bula papal), que condenam explicitamente as touradas. Se a Bíblia justifica o tratamento dado nas touradas aos animais, como se explica a existência destes documentos?
O argumento da coerência
Frequentemente acusa-se as pessoas que se opõem à morte de touros em espectáculos públicos de incoerência. São contra as touradas, mas participam na exploração dos animais ao usá-los na sua alimentação. A objecção contém ainda uma sugestão: os defensores dos animais, para serem coerentes, devem ser vegetarianos. O vegetarianismo é, aos seus olhos, tão estranho que acreditam ter assim mostrado o ridículo da posição oposta. Mas não é necessário ser vegetariano para ser contra os espectáculos com touros de morte. Basta lembrar que nesses espectáculos os touros não são usados para satisfazer nenhuma necessidade básica, mas para o divertimento e prazer que podem ser obtidos de muitas outras formas. Assim, quer a objecção quer a sugestão são deslocadas.
Conclusão
O que aqui escrevemos não resolve definitivamente a questão. Mas mostra que ela deve ser resolvida por intermédio de uma argumentação rigorosa (algo que muitas pessoas parecem ignorar); que alguns dos principais argumentos usados pelos defensores dos touros de morte são maus; e que os seus críticos têm alguma probabilidade de estar certos. Esta probabilidade é razão suficiente para que a nossa atitude em relação aos animais não humanos sofra uma alteração radical.
É, por isso, lamentável que o senhor Presidente da República e a classe política em geral se preparem agora para dar enquadramento legal a um procedimento para o qual não apresentam nenhum fundamento e que tudo leva a crer ser moralmente inaceitável.
ÁLVARO NUNES E JÚLIO SAMEIRO
Domingo, 7 de Julho de 2002
Centro de Ética Aplicada da Sociedade Portuguesa de Filosofia
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