Portugal
Do Abafador ao Tabu
"Era uma vez um pai que tinha um filho. Criou-o com todo sacrifício, tod'á pobreza e um dia quando o pai já era muito velhinho, o filho – naquele tempo era costume levarem os pais assim pó monte, pós lobos comerem – o filho disse':
- Vá pai, vá-se preparando qu'amanhã eu vou levá-Io pó cimo do monte. Atão, ó outro dia, ele pegou no pai logo de manhã e foram puma serr'acima, lá ondé que tav'ós lobos."
Extracto de "O filho ruim" (Conto da tradição oral, escutado no concelho de Palmela, recolhido por António Fontinha e transcrito em Contos Populares Portugueses, Câmara Municipal de Palmela, 1997). O abandono no monte dos pais velhos pelos filhos é um tema frequente na tradição popular. Há várias versões que são repetidas em diversas zonas do país. Não, não se trata de eutanásia. Mas revela, para alguns, que o tema não está tão longe dos portugueses quanto possa parecer.
Miguel Torga, médico escritor, refere em "Alma Grande", nos Novos Contos da Montanha, a figura do "abafador": o homem, o "pai da morte" que, nas aldeias abreviava a vida do moribundo."Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impaciente o último alento do agonizante, metia-se pelo quarto dentro, fechava a porta, e pouco depois saía com uma paz no rosto pelo menos igual à que tinha deixado ao morto".
Em Portugal a eutanásia é proibida. Mas faz-se, estão convencidos alguns médicos com quem a PÚBLICA
[1] falou sob anonimato. Não se confundam conceitos. As regras deontológicas aceitam que se desligue a máquina a um doente com morte cerebral, rejeitam a obstinação, o encarniçamento terapêutico – insistir em tratamentos desnecessários que lhes prolongam a vida sem dignidade – dizem que não se pode começar um tratamento sem o consentimento do doente, desde que consciente. Para Germano de Sousa, bastonário da Ordem dos Médicos, que recusa que haja casos de eutanásia em Portugal, o médico não pode interromper o tratamento já começado a pedido do doente. A prática médica nacional aceita ainda outra situação: que devido a medicamentos para aliviar a dor se encurte a vida do paciente (caso tradicional, mas discutível - há quem diga que não mata, pelo contrário - da aplicação de elevadas doses de morfina). Nada disto é eutanásia. "Não é matar, é deixar morrer, não há intencionalidade", esclarece Silvério Marques, médico oncologista, responsável pelo Gabinete de Estudos de Filosofia do Doente do Instituto de Oncologia de Lisboa.
O tema é pouco discutido – concordam João Lobo Antunes, neurocirurgião no Hospital de Santa Maria, em Lisboa – " o verdadeiro debate de classe, sem preconceitos, livre, com perspectivas histórica, cultural e profissional, está por fazer" – e Alexandre Quintanilha professor e investigador de biofísica na Universidade do Porto – "não é que não tenhamos curiosidade no tema, mas a classe médica tem relutância em falar" – É que, continua o segundo, "nós, os portugueses, temos uma certa dificuldade em pensar na ideia da morte como um acto no qual possamos interferir. A eutanásia é um tabu e esses levam muito tempo a ser ultrapassados porque têm a ver com sensações muito viscerais. Os portugueses não são chamados a assumir posições pragmáticas, por difíceis que sejam, na nossa existência 'vis-a-vis' com os outros.
Há muito a noção, vinda do catolicismo primitivo, de que para falar com a entidade suprema, a divindade, vamos através do padre: fazemos as asneiras, confessamos e ficamos limpos outra vez. No protestantismo é cada um sozinho perante Deus, tem que tomar as suas decisões. Isso dá-lhe uma noção de tragédia e de responsabilidade sobre a própria vida muito maior."
Germano de Sousa não considera que se discuta pouco o assunto, nem vê necessidade de mudanças legais. Tão simplesmente "porque os médicos portugueses não concordam com a eutanásia". Os holandeses "podiam ter incrementado meios para evitar o sofrimento insuportável dos doentes, só que são egoístas e têm ideias muito concretas acerca do que é preciso poupar. É um povo extremamente individualista que não se quer preocupar com os outros".
Alexandre Quintanilha prefere lembrar que "na grande maioria dos países, pratica-se eutanásia sem lei nenhuma". Portugal não é excepção "acho que praticamos, de certeza", só que cá, "depende muito da família e do médico que se tem. Na Holanda, com a lei, é mais difícil, há regras, o processo é longo e mais difícil."
Embora considere, juntamente com Lobo Antunes, que o país não está preparado para uma lei semelhante à holandesa, David Ferreira, médico (não em exercício), vice-reitor da Universidade de Lisboa, defende a existência de uma lei "para clarificar as coisas". "O pior de tudo é a hipocrisia. Os holandeses são pragmáticos, resolvem os problemas que têm para resolver, são uma sociedade muito tolerante".
O que Lobo Antunes não aceita é posições dogmáticas de quem "se sente iluminado por uma graça divina, e assim busca impor valores de uma ortodoxia que molda uma reflexão ética redutora na sua proclamada superioridade moral, desajustada à cultura e tradição da nossa sociedade, e da realidade biológica do sofrimento no caminho que se percorre até à morte". "Não há matérias sagradas na discussão ética" e, sublinha, há que ter cuidado com "ideais olímpicos de princípios éticos universais, que parecem esquecer novas realidades". Os seus "'padres-mestres' argumentam com o anátema do relativismo ético e cultural, e desprezam a realidade de 'mundos morais locais'. A quem duvida que eles existem, eu recomendo uma visita à minha unidade de cuidados intensivos".
As posições oficiais do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e da Ordem dos Médicos coincidem. A eutanásia não deve ser permitida. Para o primeiro, não existe qualquer argumento ético, social, moral, jurídico ou deontológico que justifique em teoria que se torne possível, por força da lei, a morte intencional de um doente por um médico, mesmo que a decisão seja tomada a pedido ou por "compaixão". A segunda invoca muitas vezes o juramento de Hipócrates, sublinhando que o médico está comprometido com a vida, em curar, não em matar. "As suas sentenças [do juramento hipocrático] não podem ser usadas como máximas todo poderosas para evitar a responsabilidade pessoal inerente à prática da medicina", contra-argumenta Lobo Antunes.
"Procurar refúgios em aforismos antigos é virar costas às necessidades únicas de cada um dos nossos doentes que se entrega ao nosso cuidado. Os médicos que acreditam que uma pessoa tem o direito de escolher a sua morte se o seu sofrimento não pode ser aliviado de outro modo, deverão interrogar a sua consciência e decidir como devem proceder nessas circunstâncias". Acrescenta: "Os médicos acompanham os seus doentes e depois deixam-nos à porta. Não vão até ao fim".
A "dignidade na morte é um valor a defender", sustenta David Ferreira que, tal como Silvério Marques, fala com a PÚBLICA a título pessoal e não como membro do CNECV (como todos os elementos o seus mandatos terminaram em 2001 mas ainda não foram substituídos ou reconduzidos...). "Devemos ter autonomia para dispor da nossa vida".
Na mesma linha vai Alexandre Quintanilha: "A autonomia e a independência de cada um de nós é a base de qualquer democracia, não temos o direito de fazer o que quisermos em relação aos outros, mas em relação a nós próprios...
Podem-me acusar de um individualismo extremo, mas as democracias existem para defender os direitos das minorias, os das maiorias é fácil." O cientista fez um testamento de vida nos EUA, que tem que ser renovado de cinco em cinco anos, onde exige dos médicos que, se estiver numa situação irrecuperável, seja desligado das máquinas. "Cá não me vale de nada, dependerá do critério do médico...". Ele não quer, "nem quereria nunca que se impusesse a eutanásia a quem quer que fosse, isso não é solução, há os tratamentos paliativos para diminuir a dor, etc., uma coisa não é incompatível com a outra". Mas "eu deveria ter o direito de decidir sobre a minha própria existência".
Silvério Marques insiste na importância de mitigar a dor."Não há praticamente em Portugal cuidados paliativos diferenciados hospitalares ou domiciliários. É pura barbárie discutir o fim da vida antes de ter tudo isto". E David Ferreira frisa que "os médicos não estão preparados para cuidar da dor. Estão educados para diagnosticar e tratar, mas não para olhar pelas pessoas terminais, agonizantes".
"Não ensinamos a morte nem o sofrimento. Não fomos treinados para aliviar a dor", concorda Lobo Antunes. Como exemplo da desatenção generalizada dada à dor, Silvério Marques lembra que "a metadona está legalizada para os toxicodependentes, mas não para os doentes de cancro..." Não, este médico não se imagina a praticar eutanásia. "Acho que me violaria, mas às vezes não há outra maneira de agir". É, em princípio, contra. Oncologia é uma zona afeita a estas situações. "Já morreram doentes mercê dos meus tratamentos, os doentes morrem às mãos dos médicos, mas isso é diferente. Nem todas as nossas atitudes são racionalizáveis. Nenhum acto humano é completamente explicável".
Defende uma ampla discussão e legislação sobre o fim da vida na área do consentimento informado, dos testamentos de vida, das disposições pessoais em relação ao fim:"A solução passa por uma cultura em que cada pessoa pensa na sua morte em termos concretos. Estes são problemas tenebrosos, não tem que haver soluções globais".
O que o assusta na eutanásia? "A noção de uma sociedade demasiado asséptica em que as pessoas em determinadas condições sentem que não devem viver ou não querem viver, não apenas em situações de grande sofrimento físico, mas de fuga à velhice, à senilidade. Uma sociedade onde se sentem excluídos. Estamos numa comunidade em que os idosos são largamente abandonados por razões diferentes em lares ou casas de saúde e morrem muitas vezes sós sem cuidados pessoais e médicos e de enfermagem adequados. Esta é a realidade. ". Nascer e morrer "tem alguma coisa de sagrado, há que deixar a natureza seguir o seu curso. E aceitar as excepções". Mais. "Nunca vi o que me parece um estudo elementar: quais são os benefícios económicos e outros das pessoas que estão à volta dos doentes que pediram eutanásia? Não percebo como é que um sistema em que os seus elementos se auto eliminam ou são eliminados não monta um observatório que analise os efeitos."
No serviço de Lobo Antunes não há memória de qualquer eutanásia. "Nunca a pratiquei. Mas hoje lamento, pelo menos uma vez, não ter tido a coragem de ter aliviado o sofrimento de um ente querido, na agonia de uma dispneia intratável. Ofereci-lhe simplesmente uma torrente silenciosa de lágrimas. Será que ele, em trágica inversão dos papéis terá pensado como o aviador de Saint-Exupery frente ao pequeno príncipe inconsolável: "Não sabia mais que lhe dizer (...) Não sabia como chegar até ele... É tão misterioso o país das lágrimas'?"
Dulce Neto, In Público, Suplemento Pública, Segunda-Feira, 22 de Abril de 2002
[1] Revista- suplemento do Jornal Público.