Sexta-feira, 6 de Fevereiro de 2009

O problema da justificação do Estado

A teoria do contrato social

 
Paulo Andrade Ruas
 
        
1. Introdução
 
          O Estado tem o poder de impor a todos os cidadãos o cumprimento das suas decisões, incluindo aos cidadãos que delas discordem. Este poder de coerção pode ser exercido de diversas maneiras. Um governo pode ser considerado ilegítimo ou legítimo (por exemplo, antes e depois do 25 de Abril). Consequentemente, uma das questões que tem ocupado a filosofia política é saber em que condições o exercício do poder político é legítimo (em que condições os governos e outras instituições estatais têm o direito de mandar).
          Os direitos legalmente reconhecidos numa sociedade podem ser objecto de desacordo profundo. O aborto é um exemplo. Nas sociedades onde interromper a gravidez constitui um direito legal, pode haver pessoas que pensem que as mulheres que recorrem a essa prática não têm o direito moral de o fazer; pelo contrário, nas sociedades onde o aborto é proibido, sucede o inverso: há pessoas que pensam que as mulheres têm o direito moral de abortar e, portanto, que o Estado as está a privar, por via legal, desse direito. Um direito legal não tem obrigatoriamente que corresponder a um direito moral (e vice-versa). As reivindicações dos homossexuais oferecem-nos outro exemplo. Será justo atribuir aos homossexuais o acesso ao casamento civil? Ou será permissível discriminá-los com base na sua opção sexual? Se não há o direito moral de discriminar as pessoas com base na sua orientação sexual, será legítimo que o Estado lhes negue esse direito legal? Estas questões não são fáceis. Elas obrigam a colocar dois problemas: (1) que direitos devem as pessoas ter?; (2) que legitimidade tem o Estado para exercer o seu poder? São estes dois problemas que iremos tratar em seguida.
          Estes problemas são tanto mais importantes quanto as relações que as pessoas podem estabelecer consigo próprias – e entre si – dependem em larga medida dos direitos que o Estado em cada momento lhes concede. Terá o estado legitimidade para obrigar uma pessoa a viver em condições que a própria considera sem sentido nem valor – por exemplo, um tetraplégico ou um doente terminal – e recusar-lhe os meios legais para pôr fim à sua vida? Qualquer que seja a perspectiva sobre estas difíceis questões, é aceitável dizer que a acção legítima do Estado está associada aos direitos dos cidadãos.
          John Locke, Rousseau e outros defensores da teoria do contrato social, pensaram que o Estado tem legitimidade para intervir na sociedade desde que a sua acção não ponha em jogo os direitos naturais das pessoas. Esta ideia está presente na Declaração de Independência dos Estados Unidos: inclui o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade. A lista destes direitos pode variar mas a ideia é a mesma: os poderes legítimos do Estado são-lhe atribuídos voluntariamente pelos cidadãos (sob a forma de um contrato social). O Estado não pode ir além do poder que recebeu dos cidadãos. E como os cidadãos não podem legitimamente violar os direitos dos outros, não podem transferir esse poder para o estado. Logo, o estado não pode desrespeitar os direitos de todos.
 
2. O problema da legitimidade do estado
 
          O Estado, através das suas estruturas (governo, parlamento, etc.), tem o poder de aprovar leis e de as fazer cumprir. Pode instituir um regime de discriminação racial como se verificava nos Estados Unidos antes de as lutas pelos direitos civis lideradas por Martin Luther King lhe terem posto fim. Pode proibir determinados actos, alguns que consideramos no domínio da vida privada, como o casamento entre pessoas de raças diferentes ou pessoas do mesmo sexo. Pode ainda aplicar sanções (multas, penas de prisão, etc.) às pessoas que não cumprirem as leis, por muito que delas discordem, incluindo por razões de natureza moral. Estas leis aplicam-se a aspectos tão variados como o pagamento de impostos, a regulamentação do trânsito ou o direito à liberdade política.
          A questão é determinar sob que fundamento, legitimidade ou direito, o Estado exerce controlo sobre os cidadãos. Em que se baseia a autoridade com que o faz e como poderá ser justificada? Este problema é tanto mais importante quanto sabemos que nem todas as formas de exercer o poder são legítimas. Um ditador que exerce o poder pela força pode ter o apoio do exército e da polícia para controlar a população, mas falta-lhe a legitimidade para governar. Em Portugal, por exemplo, antes do 25 de Abril de 1974, um governo apoiado em eleições fraudulentas, a que só um partido podia concorrer, num regime de censura à imprensa e na polícia política que perseguia todas as dissidências, exercia o poder em nome do país, mas sem verdadeiramente lhe pedir a opinião. As pessoas que se manifestavam publicamente contra o governo eram presas e podiam sofrer diversos géneros de penas e sanções. Desde 25 de Abril de 1974, no entanto, a autoridade do estado, do governo e outras instituições, passou a basear-se na vontade de todos os portugueses, consultados em eleições livres. Desde então, a legitimidade dos órgãos de soberania fundamenta-se na livre escolhade todos cidadãos.
          Mas nem sempre foi assim. As monarquias absolutas, que vigoraram na maior parte dos países da Europa até aos séculos XVIII e XIX, justificavam o seu poder em nome de Deus; o reconhecimento dos reis pelo Papa nos países católicos era, no plano simbólico, o coroamento desta tese. Mas, apesar de a Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776, e da Revolução Francesa em 1789, reconhecer direitos iguais a todos os cidadãos, a escravatura continuou a ser admitida na América e o direito de voto manteve-se durante muitos anos reservado aos homens. Hoje quase ninguém duvida de que não há o direito moral de possuir escravos ou de privar as mulheres do poder de votar. Em qualquer dos casos, apenas foram possíveis avanços após duras lutas sociais e, nos Estados Unidos, no caso da escravatura, uma guerra civil sangrenta.
          Estes exemplos mostram que os direitos socialmente reconhecidos em cada época podem limitar severamente o campo de acção legítima das pessoas. Mas, tal como o Estado pode, por via legal, privar as pessoas de direitos que moralmente lhes pertencem, pode ser também o garante do respeito por esses direitos. Antes do 25 de Abril de 1974, as leis em vigor no país permitiam reprimir as manifestações políticas contra o governo, mas as leis actuais garantem a todos que esse direito não pode ser posto em causa.     
          Assim, a legitimidade do Estado depende do tipo de autoridade que reivindica para si próprio. Quando a autoridade se baseia na força, sendo utilizada para diminuir e violar direitos reconhecidos, a autoridade é ilegítima. O problema consiste em saber donde provém a autoridade legítima do estado e quais os seus limites. Numa palavra, o seu fundamento.
          Como a legitimidade do poder político depende do género de autoridade que o estado reivindica para si próprio, o problema é determinar que fontes de autoridade são legítimas.
 
3. A teoria do contrato social de John Locke    
 
          Locke foi um importante defensor da teoria dos direitos naturais. Segundo ele, todos os seres humanos nascem iguais em direitos. Entre eles encontra-se o direito à propriedade, à liberdade e à vida. Locke acreditava que todos os seres humanos, pelo facto de serem pessoas, possuem direitos naturais que ninguém pode legitimamente por em causa, incluindo o estado. Locke baseou neles a sua teoria da justificação do estado. Se ninguém tem o direito de violar estes direitos naturais, então é evidente que não há o direito de coagir outra pessoa, de lhe impor uma vontade e subordinar-lhe a sua liberdade.
          Esta ideia tem importantes consequências. Se o exercício legítimo do poder político por parte das instituições do estado (governo, parlamento, tribunais, etc.) tem obrigatoriamente de incluir o de coagir os cidadãos a terem certos comportamentos e a punir os que infringem a lei, ele só pode ser exercido com o consentimento dos que lhe estão sujeitos. É esta exigência de consentimento de todos que deu origem ao contrato social.
          Resta saber o que poderá ter levado os indivíduos, num determinado momento da evolução da vida social, a consentirem na criação de uma estrutura de poder à qual passam a estar voluntariamente sujeitos. Para responder a esta questão, é necessário determinar como seria a vida sem o estado, que factores conduziram à sua criação e como justificar a sua existência. Só assim poderemos perceber as suas causas e as razões que o legitimam.
 
3.1 O estado de natureza
 
          O estado de natureza é a designação dada por Locke e outros filósofos para a vida social antes da criação do Estado. Segundo Locke, a ausência de um poder central capaz de impor a ordem social não teria obrigatoriamente como consequência a guerra de todos contra todos. Locke pensava que no estado de natureza, as pessoas tenderiam a reger o seu comportamento por um princípio moral a que chamava lei da natureza. Esta lei prescreve que não devemos agir de forma a prejudicar os outros em nenhum dos seus direitos, excepto se isso for necessário para nos defendermos. A liberdade no estado de natureza não corresponde a uma situação onde tudo é lícito e nada obedece a princípios.
          A lei da natureza, todavia, não é algo que possamos esperar que seja cumprida automaticamente. Embora as pessoas tenham o dever de se comportarem de acordo com ela, é de esperar que por vezes não o façam. Sempre que tal aconteça, há que punir os transgressores. Mas nenhuma instituição tem o monopólio da administração da justiça. Locke conclui que todos têm legitimidade para administrar a justiça e fazer cumprir a lei. Cada pessoa possui o direito de aplicar a justiça aos que violem a lei da natureza. Não só a vítima tem legitimidade para punir o transgressor como qualquer outro cidadão a tem. 
          Os problemas surgem quando se verificam divergências sobre o modo como a lei da natureza deve ser aplicada. Dado que todos possuem o direito de administrar a justiça, a probabilidade de diferentes agentes discordarem quanto à punição a atribuir a certas ofensas, e se foram realmente cometidas ofensas ao serem praticadas certas acções, não pode ser ignorada. Locke pensava que quando se atingiu um estádio de desenvolvimento económico acima da subsistência, e cada família passou a produzir mais do que consumia, o desenvolvimento das trocas comerciais e o dinheiro fizeram aumentar as disputas sobre a propriedade e, em consequência, as disputas sobre a justiça. A pressão exercida pelo aumento das trocas comerciais associado ao desejo de enriquecer sobre uma administração não centralizada seria suficiente para levar ao limite as virtualidades do estado da natureza. Sem um estado central, a vida seria cada vez mais difícil.
 
3.2 Estado e autonomia individual: o contrato social
 
          O Estado é uma criação artificial. Que a vida social, a partir de certo nível de desenvolvimento, se torne impossível sem o recurso a uma autoridade centralizada, pode ser visto como a causa do seu aparecimento. Mas não é ainda uma razão para obedecer aos seus propósitos e, portanto, uma razão para aceitar como legítimaa sua autoridade.
          Vimos que o reconhecimento de legitimidade ao exercício do poder político por parte do Estado implica um dever de obediência por parte dos cidadãos (que pode não ser absoluto). Dado que as pessoas são iguais em direitos, ninguém está autorizado a exercer o poder sobre os outros a menos que essa autoridade lhe tenha sido conferida voluntariamente por todos. Isto supõe que o Estado seja criado através de um contrato social.
         Através do contrato social dá-se uma transferência dos poderes que pertenciam aos cidadãos para a posse do Estado. É o Estado, por exemplo, que passa a deter o monopólio da aplicação da justiça, que deixa de estar nas mãos dos cidadãos. Se a aplicação da justiça for deficiente, como acontecia no estado de natureza, são estes direitos que estão ameaçados. O Estado encontra a sua justificação na protecção dos direitos naturais dos cidadãos e tem esses direitos como limite. Isto significa que o Estado é um instrumento destinado a garantir os direitos individuais, não podendo em caso algum pô-los em causa. 
          A teoria do contrato social de Locke procura conciliar a autoridade do Estado com a liberdade própria de cada pessoa. Mas existe um problema: quando teve lugar o contrato social? Como podemos estar certos de que o estado tem o consentimento de todos os cidadãos?
          A teoria de Locke coloca-nos perante um dilema: ou dispomos de meios para garantir que o contrato social teve efectivamente lugar ou temos de reconhecer que o estado actual não tem legitimidade. Este dilema, para o qual não há solução, limita o alcance da teoria.
          A resposta de Locke para o problema consiste em defender que o contrato social foi um acontecimento real, algo que aconteceu num determinado momento da história humana. Mas será esta hipótese satisfatória? Provavelmente não. Mesmo que tal tivesse sucedido no passado, um contrato celebrado pelos nossos antepassados apenas comprometeria quem o celebrou, e não nós próprios. Logo, embora o estado original tivesse legitimidade para exercer do poder, o mesmo não aconteceria com o estado actual. Um contrato apenas pode comprometer quem o celebra, nunca a sua descendência.
          Para que o Estado actual adquirisse legitimidade seria necessário que a cada nova geração um novo contrato fosse celebrado. Ora, pelo menos directamente, não é isso que sucede. Ninguém me perguntou até agora se aceito transferir para o estado o direito – que Locke defende que me pertence por natureza – de, por exemplo, aplicar a justiça. E, tanto quanto se sabe, nenhuma outra pessoa foi consultada sobre este assunto. Quererá isto dizer que o Estado actual não tem o direito de exercer a autoridade política? É pouco provável. Resta-nos, portanto, averiguar se haverá uma maneira indirecta de os cidadãos expressarem consentimento em relação à autoridade do Estado.
          Uma hipótese é o voto. Mas nem todas as eleições são adequadas. Apenas um voto democrático e livre pode servir. Esta hipótese parece plausível, sobretudo a quem está habituado a viver em países democráticos. Contudo, esta forma indirecta de contrato não resolve a questão. Porquê? Por duas razões conjugadas: (1) o Estado reclama autoridade sobre todos os cidadãos, e não apenas sobre alguns; (2) algumas pessoas abstêm-se de votar. E isto tem uma consequência: ou o Estado apenas tem o direito de punir pessoas que votam e que não cumprem as leis (afinal, apenas estas deram o seu consentimento indirecto), o que parece absurdo (quem não votasse não seria obrigado ao pagamento de impostos, por exemplo) ou a existência de eleições livres não é suficiente para, no quadro da teoria de Locke, dar legitimidade ao poder do Estado.  
          Esta dificuldade resulta de a noção de direito natural implicar que no contrato social a transferência de poderes (dos cidadãos para o Estado) tenha lugar entre todas as pessoas, e não uma parte (mesmo que maioritária). Como a legitimidade do Estado só existe se lhe for dada por cada cidadão – livre e autonomamente – o Estado apenas teria o direito de exercer o poder sobre os cidadãos que dessem o seu consentimento. Ora, a jurisdição do Estado é universal: não poderia existir para uns sem existir para os restantes.
          Mas existe uma outra maneira de renovar o contrato social de forma indirecta (ou tácita).
          A ideia de Locke é que todas as pessoas, pelo mero facto de beneficiarem das vantagens que a vida em sociedade lhes proporciona (estradas, hospitais, escolas, tribunais, etc.) estão implicitamente a aceitar a autoridade do Estado dado que estes benefícios não poderiam existir sem colecta de impostos, sendo o Estado a instituição capaz de o fazer.
          Mas esta solução não é satisfatória. Afinal, se cabe a cada pessoa livremente aceitar (ou não) a autoridade do Estado, que alternativas estariam aos seus dispor no caso de uma recusa? Aparentemente, nenhuma. O Estado é omnipresente. O cidadão que recusasse aceitar a sua autoridade não poderia ir-se embora e fechar a porta atrás de si: para onde iria? Mas, se não há alternativa ao Estado, será que se pode falar em acordo tácito? Parece bem que não.
 
 
 
publicado por Luís MM Duarte às 13:07
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