Sábado, 21 de Abril de 2012

A REDEFINIÇÃO (DA NOÇÃO) DE HOMEM

A REDEFINIÇÃO OU REINVENÇÃO DO HOMEM

- Escrito após a leitura de Carlo Strenger (Filósofo e Psicanalista), O Medo da Insignificância, Ed. Lua de Papel, 2012

_____________________________________________________________________________________________

 

É necessário redefinir (a noção de) Homem.

Duplamente; biológica e cognitivamente. Simultaneamente.

 

Se, quanto à primeira, a noção de homo sapiens-sapiens deverá dar lugar à de homo sapiens-globalis; quanto à segunda, a noção de cogito, ergo sum cartesiana deverá dar lugar à noção de conto de um ranking, logo existo, a qual decorre de uma outra que a precede: i profit, therefore i’m.

 

Ao longo de milhões de anos, assistiu-se a um longo processo filogenético, do qual evoluiu a espécie humana e que, ao longo de milhares de anos foi sujeita a outras evoluções que o catapultaram para a hominização. Ela persiste ainda nos nossos dias, quer filogenética, quer ontogeneticamente. E perdurará, com certeza, no futuro. Caso ainda subsista.

 

A evolução obrigava a uma adaptação ao meio, como todas as outras espécies, para assegurar a sobrevivência. Com o Homem não foi diferente: desde o ramapithecus ao sapiens-sapiens.

 

O estranho é que nos últimos milénios, malgrado o desenvolvimento do conhecimento teórico e instrumental e, sobretudo, no último século, ao colossal desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia, assiste-se a uma desvalorização do próprio homem – pelo menos, do humanismo ­ – e do conhecimento – pelo menos, intelectual –, face ao primado da apropriação e exploração da natureza.

 

Assiste-se, gradual e progressivamente, a um divórcio entre o Homem e a Natureza, inaugurado com a Modernidade, através da desnaturalização do homem e a concomitante desumanização da natureza. O equilíbrio entre ambos fora destruído com o fim do Renascimento.

 

Passa-se, como refere João Maria André, de uma razão mágica, contemplativa, estética, para uma razão instrumental, maquinal e matematizadora. A objetivação do natural é solidária da subjetivação do humano: reificara-se, doravante, a natureza, sob a égide da mensurabilidade positiva e científica. Agravada pelo facto da natureza deixar de ser vista como parte sistémica de um todo, no qual o homem se insere, para passar a ser vista como somente matéria-prima para a sua sede intrépida de consumismo e desperdício.

 

A criação de instrumentos e o desenvolvimento de todos os seus artefactos e mentefactos, pelo homo sapiens-sapiens, deixou de ter como objetivo a sobrevivência, antes, almeja o lucro. A todo o custo. O materialismo alia-se, indissociavelmente, ao capitalismo e, ambos, ao narcisismo individual e coletivo. Os indivíduos, alienando o seu trabalho e valores, trocam-nos por um salário, muitas vezes também injusto, em nome da ilusão da compensação no ter, alienando, consequentemente, a sua consciência e capacidade crítica e interventiva.

 

Como refere Erich Fromm[1], prescindiu-se do SER e, diria, ESTAR no mundo, para TER algo do mundo. Os valores, os princípios, o saber e, numa palavra, o ESTAR, são facilmente substituídos pelo possuir, ostentar, fruir, dominar, numa expressão, TER.

 

Tal substituição perverte e transmuta, porém, a própria evolução humana, reduzindo-a a um objeto de ter e não a um ser, de existir. O Homem já nem existe nem sequer vive; limita-se a sobreviver. Tal mutilação não se aplica, contudo, apenas à maioria assalariada, mas também a uma minoria de poderosos. Estes, julgando possuir os meios para dominar, acabam dominados pelo lucro, pela indómita cobiça de o
multiplicarem, esquecendo-se, inclusive e paradoxalmente, de viver. Aqueles, porque duplamente alienados, reduzem-se a um limite de quase mera consistência.

 

Esta perversão paga-se cara. Demasiado cara. E a sua inversão afigura-se insanável, a não ser que ainda, como refere João Maria André, num misto de elegante recorte literário e de profundidade filosófica:

 

Mais uma vez Prometeu trouxera o fogo dos céus para a Terra e quando o homem moderno reabriu a caixa de Pandora, a esperança no progresso foi o primeiro elixir a ser derramado. Cantaram e dançaram os humanos, ébrios de força e poder. Mas Zeus, lá no alto, sorriu. Adivinhava já o dia em que esse fogo tudo havia de devastar, transformando a esperança no progresso, num progresso sem esperança. E o teatro continua hoje no grande palco do mundo: Fausto e Prometeu devoram-se mutuamente. Deles, mais não resta que Narciso e esse definha, perante a sua própria imagem. Tragicamente. Inexoravelmente. E com ele também nós, Ícaros ainda incrédulos, hipnotizados pelo Sol. A não ser que, e talvez ainda estejamos a tempo, saibamos reinventar uma nova alquimia e através dela descubramos a nossa pedra filosofal[2].

 

Somos, portanto, uma sociedade de gente manifestamente amargurada: só, mesmo na multidão, impacientes, acabrunhados, (auto) destrutivos, ostracizados de forma consentida, a qual ainda se regozija, patologicamente, de destruir o tempo que tenta poupar.

 

O hedonismo parece ser a única saída: “A Era do vazio”, como refere Gilles Lipovetsky, é o lema. Procura-se no prazer o vazio existencial; prazer esse procurado na obtenção de bens e de lucro. Seremos tanto mais quanto mais se tiver, o que gera concorrência, competitividade, individualismo e autodestruição da cooperação ancestral que caraterizava a evolução do homo sapiens-sapiens.

 

A sociedade de consumo, tipicamente materialista, tornou-se numa sociedade de desperdício, que consome, sobretudo, o que não necessita, para compensar aquilo de que, essencialmente, está privado: de valores. E, ao fazê-lo, destrói-se a si mesma, aos restantes, quanto à natureza humana, e à própria natureza natural.

 

O gregarismo, fator preponderante de coesão e evolução humanas, tende a desagregar-se, malgrado a demagogia da democracia e da solidariedade e
filantropia, dando lugar a um narcisismo individual que espelha e promove o social.

 

A globalização e o novo homem que dela decorre, o homo globalis, se bem que concorra para uma info-inclusão, contribui, simultaneamente, para uma infoexclusão e acaba por alimentar a alienação a que este novo homem está lançado. O vazio existencial obriga-o a procurar sentido na alucinação de um clique do telecomando, do zapping televisivo, ou da digitalização de caracteres em qualquer motor de busca da internet. O verdadeiro saber, o conhecimento, é substituído pelo simples saber de clichés, de manchetes; assim como a informação reduzida à infotainment, ao hibridismo entre a informação-entretenimento.

 

O Medo da Insignificância decorre precisamente desse sentimento de absurdo, de ausência de sentido existencial: perdeu-se não apenas a identidade pessoal, como a identidade coletiva, com a busca de prazer imediato e na compensação do ter e da necessidade em se ser reconhecido. Quem não se sentir reconhecido, corre o risco de ser, pura e simplesmente, nada.

 

O próprio capitalismo, também ele global, causa-efeito desse sentimento de absurdo, produz o sentimento que o valor real – tanto do indivíduo, como do coletivo e nacional – só se consubstancializa se for quantificável, mensurável, como a própria natureza, matéria-prima das Indústrias e da metodologia científica. Do Google às redes sociais ou às revistas cor-de-rosa – das celebridades e das fortunas, como a Forbes –, o ser só o é se se tiver algo e se esse algo for reconhecido, diretamente proporcional ao número de vezes com que somos citados, subscritos ou do nosso ranking de audiências – desde as televisivas às das redes sociais e das escolares às da bolsa. Portugal e, ainda com maior gravidade, a Grécia, são consideradas, por estes mecanismos aferidores, como lixo, como nada, como se, em nome do ter, pudesse apagar-se países, territórios, povos, culturas, pessoas!

 

Tal sentimento de absurdo está associado ao medo de se ver reduzido ao medo da insignificância, da insustentável leveza do nada e, com eles, à obsessão em ostentar algo, como a amiúde mudança de carro, de casa, de roupa, malgrado a austeridade e a falência da economia. Vive-se, por isso, além das nossas possibilidades. Círculo vicioso, inquinado pelo Sistema que o (retro) alimenta.

 

É lugar, finalmente, para redefinir, a nível cognitivo, este novo homo globalis, em que a fórmula cartesiana do cogito, ergo sum – ainda que tenha tido a sua grande quota-parte de responsabilidade neste divórcio Homem-Natureza, pelo primado de uma razão maquinal, instrumental e matemática e pela desubjetivação do real pela objetivação do pensar – dá lugar a uma outra mais apropriada ao nosso tempo: i profit, therefore i’m e, com ela, a outra mais perversa: conto de um ranking, logo existo.

Se, pela primeira, a “existência” deriva do lucro; pela segunda, a “existência” obter-se-á pelo reconhecimento de rankings.

 

As consequências deste quadro, além de catastróficas a nível económico-financeiro-social e político, transferem-se para uma patologia psicológica e existencial: o egoísmo narcisista e destrutivo, aliado ao consumismo materialista, como réstia de doação de sentido, gera um sentimento de inveja e de receio: inveja por uma minoria poderosa que é mais reconhecida e ostenta maior ter; receio pela maioria, duplamente alienada, que pouco ou nada tem, mas que pode fazer desejar o que os outros possuem, ad infinitum et absurdum. Cordeiros que podem tornar-se raposas e estas, cordeiros.

 

Mais do que nunca, as palavras de Michel Foucault[3] afiguram-se atuais, dado que a história da razão, do logos, acompanha a história da loucura, da demência. Ao sapiens-sapiens será necessário redefinir outro do seu predicado atributivo, o homo demens:

 

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos,
presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que a
salvação se espera dessa exclusão, para eles e para aqueles que os excluem.[4]

 

 

Resta acrescentar que a psicopatologia do século XIX, constituída pelos presos, desempregados, vadios e mesmo velhos, mais do que assentar numa loucura real, foi institucionalizada pelo sistema, porquanto estes indivíduos não podiam nem adquirir os produtos que o próprio sistema veiculava, nem tão-pouco produzi-los. Não estavam, portanto, inseridos no sistema: não eram nem produtores nem consumidores. Logo, nesta lógica do absurdo e do consumismo industrial, louco é quem não faz parte da “norma”. Será lugar para reiterar Nietzsche, segundo o qual a loucura é a máscara fatal que oculta a nossa liberdade ou, ao invés do adágio popular: em terra de cego, quem tem olho… é deficiente! Nunca rei! Deficiente ou louco, por que ousa contestar a suposta normalidade. Essa sim, inquinada e alienada.

 

A hipocrisia é, inevitavelmente, outra consequência direta, porquanto será necessário reprimir-se estes sentimentos e poder ser-se aceite pelos demais. A máscara torna-se omnipresente. Uma atrás da outra, mas não apenas aquelas que se envergam no exercício dos diferentes papéis sociais, antes, as do cinismo, também ele reconhecido, mas consentido e menosprezado, dado que partilhado.

 

O comportamento económico, na senda do lucro e do ter, divorcia-se do comportamento ético, do ser e do valer. Já não importa perguntar por aquilo que é bom para o Homem, mas para o crescimento do sistema.

 

O problema agudiza-se na razão direta da existência de uma maioria empobrecida que se limita a almejar o que não tem, que não pode alcançar e que nem sequer é reconhecida como existente, reforçando, assim, a sua insignificância.

 

Assim se depreende, ainda, o diagnóstico de Carlo Strenger face às ideologias, tanto nacionais, como religiosas. O fundamentalismo, por muito pérfido que seja, afigura-se, para os seus adeptos, como bálsamo ao medo da sua insignificância e absurdo de existência: morre-se por algo, por uma causa. Fornece aos terroristas uma identidade pela qual valerá a pena o suicídio e o homicídio: a destruição da própria espécie.

 

Compreende-se, em suma, que no espaço temporal de 12 anos, entre 1989 e o 11 de Setembro de 2001, vivemos num período de aparente esperança: a crença na democracia liberal, na paz e na harmonia entre os homens.

A queda do muro de Berlim deu esse elixir; o ataque às Twin Towers, destruiu-o.

Aquela, marcou o fim do século XX; este, o início do XXI.

 

Não será displicente reiterar o vaticínio de Fromm, segundo o qual, pela primeira vez na história, a sobrevivência física da raça humana depende de uma alteração profunda do coração do Homem e, sem apelar apenas a uma visão salvífica e messiânica de retorno do Homem à Natureza (natural e social), de caris ecologista, urge repensar o nosso futuro e dos nossos descendentes, não apenas como pessoas (e reabilitar o ser em vez do mero ter), mas como espécie, pois ao nos destruirmos, quer como pessoas, quer como seres naturais, destruiremos a própria possibilidade de evoluirmos e de sermos. Onto e filogeneticamente.

 

Urge, portanto, redefinir a noção de Homem e dos seus modos de sentir, agir e pensar.

A todos níveis, a começar pela substituição do modo de ter pelo de ser.

 

Da minha parte, em vez de afirmar que tenho esta preocupação, prefiro dizer sou/estou preocupado com ela…

 

Assim, como será preferível dizer sou/estou apaixonado por esta causa, em vez de dizer tenho paixão por esta causa…

 

Do mesmo modo, em vez de afirmar que tenho conhecimento disso, prefiro dizer sei-o,infelizmente…

 

Será, provavelmente, um pequeno grande passo para a desalienação inconsciente: só se reconhecendo que se está mal é que poderá procurar-se ajuda, a começar por nós mesmos: não deve dizer-se que se tem um problema, porque não é algo que se possua, reificação de mim; porém, ele pode possuir-me, tornar-me eu mesmo num problema, sou um problema, dado que transformei-me nele, acabando por padecer daquilo que criei.

Luís Duarte


[1] Das várias obras de Fromm, sugere-se, a título exemplificativo, FROMM, Erich, To have or to be, 1976.

[2] ANDRÉ, João Maria, Renascimento e modernidade, do poder da magia à magia do poder, Coimbra, Ed. Maiêutica, s/d., pp. 56-57.

[3] Cfr. FOUCAULT, Michel, História da loucura, 2003; FOUCAULT, Michel, História da sexualidade 2 – O uso dos prazeres, 1994; FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas,1992; FOUCAULT, Michel, A arqueologia do saber, 1987; FOUCAULT, Michel, Maladie mentale et psychologie.1954 e 1962.

[4]FOUCAULT, Michel, História da loucura, tradução de José Teixeira Coelho. São Paulo: Perspetiva, 2003, p.6

 

 

publicado por Luís MM Duarte às 19:21
link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito

Luís MM Duarte (Coordenação)

pesquisar

 

Novembro 2021

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
19
20
21
22
23
24
25
27
28
29
30

posts recentes

A Filosofia na encruzilha...

DIA MUNDIAL DA FILOSOFIA

Qual seria a nossa ação s...

A modernidade e o poder d...

“Da «doxa» à «episteme» (...

Dia Mundial da Filosofia ...

Diálogos sobre o livre-ar...

Ignoto vita, acerca do su...

O problema ético do abort...

O problema ético do abor...

O problema ético do abort...

Opções éticas e consequên...

Deus e a Ciência, «Debate...

A Teoria da Justiça, de J...

O fenómeno religioso entr...

É cada vez mais fácil ima...

A singularidade da vida a...

"A Alegoria do Navio", ac...

Entre Cronos e Zeus

REALIDADE REAL?

Satisfação insatisfeita

Liberdade? Somente a pont...

Como a Internet afeta a n...

Banco de Exames Nacionais...

Os "Sexalescentes" do Séc...

O fenómeno atual multimod...

A REDEFINIÇÃO (DA NOÇÃO) ...

V Comemoração do Dia Mund...

V Comemoração do Dia Mund...

O que é a Filosofia? - Um...

arquivos

Novembro 2021

Outubro 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Novembro 2020

Junho 2020

Maio 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Dezembro 2019

Junho 2019

Abril 2017

Maio 2015

Abril 2012

Novembro 2011

Novembro 2010

Abril 2010

Março 2010

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

links

SAPO Blogs

subscrever feeds