4.1 O argumento do mal
Existem versões conhecidas do argumento do mal anteriores ao desenvolvimento das tradições teístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Uma dessas formulações deve-se a Epicuro, um filósofo grego cujo pensamento foi bastante influente. Na versão de Epicuro, o argumento mostra que a hipótese de um Deus bom conduz validamente a consequências absurdas; daí não poder ser verdadeira.
O argumento é o seguinte:
(1) Deus deseja abolir o mal e não pode fazê-lo, ou Deus pode abolir o mal mas não quer fazê-lo. (2) Se deseja abolir o mal mas não pode fazê-lo, então não tem esse poder. (3) Se pode abolir o mal mas não quer fazê-lo, então não é bom. \ Deus não é bom ou não tem todos os poderes. |
Epicuro pretende mostrar que a ideia de um Deus omnipotente e bom é incompatível com a existência do mal. Fica, portanto, a pergunta: se Deus deseja acabar com o mal e pode fazê-lo, por que razão não o faz?
As respostas tradicionais a esta pergunta – i. e., ao problema do mal – designam-se por teodiceias. Uma das mais famosas teodiceias da tradição filosófica ocidental deve-se a Leibniz. Segundo Leibniz, vivemos no melhor dos mundos possíveis; Deus não deseja o mal e poderia ter criado um mundo diferente. Mas qualquer alternativa que Deus pudesse ter considerado teria ainda piores resultados do que o mundo tal como é. Esta resposta tende a parecer hoje tão pouco convincente (depois do extermínio dos judeus pelos nazis, as guerras e os cataclismos que atravessaram todo o século XX, etc.) como pareceu aos seus contemporâneos. Voltaire, em especial, satirizou Leibniz impiedosamente numa obra de ficção – Candide – onde o terramoto de Lisboa de 1775 é utilizado para cobrir de ridículo a tese de Leibniz.
O problema do mal foi desde muito cedo reconhecido pelas grandes tradições teístas e podemos encontrá-lo formulado já no Antigo Testamento. É natural que tal aconteça em virtude do desafio inescapável que coloca; os filósofos cristãos, naturalmente, não podiam evitá-lo.
Numa versão simples, o argumento pode ser proposto com o objectivo de provar que Deus não existe:
(1) Se Deus existe, o mal não existe. (2) O mal existe. \ Deus não existe. |
Tal como na versão anterior, este argumento é válido. Se ambas as premissas forem verdadeiras, a conclusão é verdadeira. Donde, se a conclusão for falsa, pelo menos uma das premissas tem de ser falsa. Mas qual? A segunda premissa parece inatacável: nem todo o optimismo de Leibniz seria suficiente para negar a existência de sofrimento gratuito (fome, doenças, guerra, cataclismos). Se há um problema com este argumento, ele tem de estar na primeira premissa.
Esta premissa afirma que a existência de Deus é suficiente para que não exista mal no mundo. Será assim?
Tudo indica que não. Sem determinarmos que características Deus possui, admitir a sua existência não garante que o mal não possa existir. É perfeitamente concebível um Deus criador sem preocupações morais. Não necessariamente um Deus mau, como no argumento de Epicuro, mas um Deus indiferente. Esta ambiguidade constitui a fraqueza do argumento.
Interpretada no sentido indicado, a primeira premissa é falsa. Mas, se interpretarmos o argumento à maneira teísta, o que no máximo provaria é que ou Deus não é bom ou não é omnipotente ou não é omnisciente, mas de modo algum que Deus não existe. O argumento seria o seguinte:
(1) Se Deus é bom, omnisciente e omnipotente, o mal não existe. (2) O mal existe. \ Deus não é bom ou não é omnisciente ou não é omnipotente. |
Mas, apesar de ter agora um alcance menor, esta versão do argumento do mal é já preocupante. Se a primeira premissa for verdadeira, pelas razões acima, a conclusão tem de ser verdadeira.
Mas, nesse caso, a concepção teísta de Deus é falsa.
4.1 Uma resposta ao argumento do mal
Uma maneira de escapar à conclusão do argumento é defender que um Deus teísta não é suficiente para excluir a existência do mal. A ideia é que um Deus sumamente bom, omnipotente e omnisciente pode permitir em certas circunstâncias a existência do mal, por exemplo, se isso for necessário para alcançar um bem maior. Seria o caso do livre arbítrio: para os teístas, a humanidade foi criada à imagem e semelhança de Deus com o propósito de ganhar a vida eterna. Mas este propósito supõe a existência de livre arbítrio tanto quanto a graça de Deus.
Deus não deseja o mal tal como podia ter criado um mundo onde o mal não existisse; mas, num mundo onde a possibilidade de praticar o mal estivesse excluída, não haveria lugar para a liberdade humana. Como a responsabilidade moral aos agentes e, portanto, o valor moral das acções, depende de terem sido livremente praticadas, sem liberdade não há responsabilidade.
Embora Deus, sendo omnisciente, saiba que dar liberdade aos seres humanos conduz à existência de mal no mundo, tal pode ser permitido por as acções terem valor moral ser um bem superior. Um mundo sem livre arbítrio seria um mundo sem valor moral, próprio de autómatos.
4.2 Duas dificuldades
Uma dificuldade que esta defesa do teísmo por via do livre arbítrio enfrenta é o facto de ser limitada.
Mesmo que o mal moral seja compatível com um Deus bom e omnipotente, esta não é a única forma de mal que há no mundo. Ainda que os homens escolhessem fazer sempre o bem, o mal natural não desapareceria. A quantidade de dor desnecessária diminuiria mas não seria eliminada. As doenças, a fome provocada por condições climáticas adversas (secas, etc.), e os cataclismos (furacões, terramotos, cheias, etc.) seriam suficientes para a vida humana se revelar particularmente difícil. Ora, todos estes acontecimentos escapam ao livre arbítrio.
Assim, Deus poderia ter permitido o mal moral e, ao mesmo tempo que garantia à vida humana valor moral, poderia ter criado um mundo onde não existissem doenças, fome, etc. Numa palavra, onde o mal natural estivesse ausente. Não é sequer claro que este género de mal implique um bem superior. Que bem trará a fome, a peste, o cancro ou um terramoto?
Por outro lado, o teísmo afirma que Deus intervém no curso do mundo. Ora, se Deus tem o poder de mudar o curso do mundo (os milagres seriam um exemplo), a existência de livre arbítrio, por si só, não implica haver mal moral. De cada vez que uma pessoa fizesse uma escolha errada (por exemplo, Hitler e o extermínio dos judeus), Deus podia impedir que fosse posta
Questões |
1. Releia com atenção o argumento proposto por Epicuro e explique pelas suas palavras o problema do mal. 2. Será que o argumento do mal provaria, caso as suas premissas fossem verdadeiras, a não existência de Deus? Porquê? 3. Que papel pode desempenhar o livre arbítrio na tentativa para conciliar a existência do mal com a concepção teísta de Deus? 4. Explique as objecções que se podem colocar à tentativa para responder ao problema do mal através do livre arbítrio humano. |
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