Uma das principais motivações para que o problema do livre arbítrio tenha sido, ou seja ainda hoje, discutido em filosofia reside na eventual incompatibilidade entre determinismo e responsabilidade. Sabemos que se o determinismo for verdadeiro, tudo o que acontece é inevitável. Mas, se não podemos evitar praticar as acções que praticamos, então não temos outra escolha; e, se não temos outra escolha, não temos liberdade (para haver liberdade tem de haver escolha). O determinismo, defendem os incompatibilistas, exclui a liberdade; as duas coisas não podem ser verdadeiras. Pela mesma razão, se houver liberdade, é o determinismo que é falso.
Mas que tem o determinismo a ver com responsabilidade moral? Para percebermos este ponto, vejamos um exemplo.
António foi dar um passeio pelo cais da cidade. Apenas ele e um amigo se encontram junto da água. Por distracção, o amigo escorrega e cai. António apercebe-se que o amigo não sabe nadar e que necessita da sua ajuda. Qual é a sua obrigação naquelas circunstâncias? Se ele também não souber nadar, não poderá ajudar o amigo; não poderá, portanto, evitar que o amigo se afogue. Seria, por conseguinte, injusto que lhe pedissem responsabilidades pela sua morte. O facto de António nada poder fazer para evitar a morte do amigo retira-lhe toda a responsabilidade.
Imaginemos, no entanto, que António sabe nadar. Neste caso, ele podia evitar que o amigo se afogasse. E se podia evitá-lo, então tinha a obrigação moral (a responsabilidade) de o tentar. Se António nada tivesse feito, seria justo acusá-lo de faltar aos deveres para com o próximo. O seu comportamento seria considerado reprovável: ninguém quereria ter um amigo assim.
Este exemplo mostra que só somos responsáveis pelas acções que está ao nosso alcance evitar (ou impedir). Eu posso com toda a justiça ser responsabilizado moralmente por assaltar um banco porque podia não o ter feito. Ninguém me obrigou a fazê-lo. Assaltar um banco é algo que decidi fazer. Se, por exemplo, tivesse pensado melhor nas consequências, podia tê-lo evitado: tinha todo o poder para isso. Assaltei o banco porque foi esse o uso que quis dar à minha liberdade. Esta ideia, de que depende sermos responsabilizados, chama-se princípio da acção evitável.
Com base neste princípio, podemos concluir, em termos gerais, que uma pessoa só é responsável pelos seus actos quando os pratica livremente, isto é, quando está em seu poder não os praticar.
Ser responsável implica ser livre. Ora, os incompatibilistas defendem que o determinismo exclui a liberdade; mas, se exclui a liberdade, exclui igualmente a responsabilidade (apenas podemos ser responsáveis se formos livres). Mas, esta consequência parece a muitos de nós inaceitável.
Não poderíamos responsabilizar Hitler pelo massacre dos judeus da Europa, Bin Laden pelo assassínio de milhares de pessoas no assalto às Twin Towers ou o presidente americano Harry Truman pela decisão de sacrificar cem mil civis inocentes de Hiroxima com o lançamento da primeira bomba atómica. Para muitos de nós estas são acções moralmente reprováveis, que merecem condenação. Mas como condenar estes actos na hipótese de o determinismo ser verdadeiro?
Poderia Truman ter poupado a população inocente de Hiroxima? Poderia Hitler não ter massacrado milhões de judeus? Poderia Bin Laden não ter atacado as Twin Towers? Para o determinismo a resposta é: não. Todas estas acções seriam tão inevitáveis como a queda de um pedaço de giz quando abrimos os dedos. Nenhuma destas pessoas podia ter feito outra coisa. Aplicando a estes casos o princípio da acção evitável, temos de concluir que não se pode responsabilizá-las.
O determinismo parece excluir a responsabilidade. Assim, se a visão determinista que a ciência nos propõe estiver correcta, parece não haver lugar no mundo para comportamentos baseados em razões morais. Mas esta ideia choca com toda a nossa educação. Afinal, somos educados para agir moralmente. Fomos educados com base em regras e valores morais, que aprendemos a considerar importantes. Aprendemos que certas acções são boas e outras más, que certas acções são correctas e outras profundamente erradas. E aprendemos que está em nosso poder evitar umas e praticar as outras. Será possível que toda a nossa educação esteja enganada neste ponto? Será possível que o nosso sentido da responsabilidade seja apenas uma ilusão?
A principal razão para não querermos abdicar da ideia de responsabilidade é que, sem responsabilidade, não se justificaria punir os que cometem acções reprováveis. Que sentido há em julgar os responsáveis nazis se eles não podiam ter evitado o que fizeram, se não estava ao seu alcance fazer outra coisa? Se o assalto às Twin Towers não podia ser evitado, se não estava ao alcance de Bin Laden impedi-lo, porquê insistir no seu julgamento para lhe aplicar o justo castigo? Será justo castigá-lo se Bin Laden não podia evitar fazer o que fez? Não estarão Hitler, Bin Laden e Truman na mesma posição que António ao ver o amigo afogar-se no cais sem nada poder fazer?
Nós queremos acreditar que quem comete um crime tem de ser responsabilizado por ele, e, por isso, merece castigo. Tudo o que nos faça pensar o contrário parece não ter muito sentido. Pensar que uma pessoa que cometeu um crime não é responsável pelo que fez parece tão inaceitável que qualquer ideia que conduza a essa conclusão tem de estar errada. Ora, se o determinismo tem essa consequência, então parece claro que o determinismo provavelmente está errado.
Um defensor do determinismo poderá, neste ponto, chamar a atenção para o seguinte aspecto.
Nem sempre castigamos alguém por considerarmos a pessoa responsável. Uma criança de três anos ainda não entende o conceito de responsabilidade mas, por vezes, os pais têm de a castigar. Fazem-no não por pensarem que a criança é responsável pelo que fez mas para que no futuro não repita o que fez. Fazem-no para evitar que uma acção com más consequências não volte a acontecer.
O mesmo se poderá passar nos outros casos. Mesmo que acreditemos no determinismo e na ausência de responsabilidade, isso não tem obrigatoriamente como consequência deixar impunes os crimes de Bin Laden ou de Hitler (Truman, talvez por ter vencido a guerra, acabou sem castigo).
Podemos julgar estes crimes não por acreditarmos na responsabilidade dos seus autores, o que não é necessário, mas por acreditarmos que punir um crime é a melhor forma de evitar crimes futuros. É nisto que muitos deterministas acreditam. Quer tenham razão quer não, as suas ideias têm pelo menos o mérito de nos chamar a atenção para as diferentes ligações que há entre os conceitos de liberdade, responsabilidade e punição (ou castigo). Se é verdade que liberdade implica responsabilidade, tudo indica não ser verdade que punir tenha que implicar responsabilidade.
Se for assim, a incompatibilidade entre determinismo e responsabilidade moral não é tão ameaçadora como parecia.
Paulo Andrade Ruas